"Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta pra início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar mais preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, eram só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesma, fogo, fome e alegria.
“Seria tão bom, como já foi...”, diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões a lenha, cascas de laranja sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas..." Rubem Alves.
Fogão a lenha me lembra fazenda. Não que ele seja apenas feito pra ficar em fazenda-apesar de que eu não conheça casa na cidade que tenha um.Se a de vocês tiver, me convidem por favor - mas é lá que tive alguns dos melhores momentos de minha vida.
Recordo-me agora das festas de família de alguns anos atrás-período em que a família estava completa com uns vinte tios e cento e tantos primos - dos aniversários dos avós, das tias, dos primos de segundo grau, mas de qualquer forma, o melhor era dos avós.
A fartura começava desde cedo. As mulheres que aqui na cidade acordam sete, oito ou nove horas pra ir trabalhar, lá acordavam cinco ou seis horas da manhã, indo logo pra onde? Adivinhem só: pra cozinha.
Ah, eu dormia pensando nos bolos do café da manhã do dia seguinte.
Engraçado era que quando eu acordava, sentia que tinha me atrasado. Dava pra perceber que por lá havia passado um furacão, ou melhor, grande parte da turma que se encontrava na casa. Porém, poderia me atrasar o tempo que fosse e mesmo assim aquele lugar festivo continuaria atendendo a meus desejos.
Terminado o café eu já queria saber o que seria preparado pro almoço no fogão à lenha.
Cozinha é local onde se preparam bolos. Na verdade, considero-a como um. Vejam só: bolos tem recheios, cozinhas também(sonhos, encantos, pessoas sorrindo, cantando e até gritando. Há recheio melhor que esse?).Alguns bolos são alvo de formigas , as cozinhas também-eu sou uma dessas formiguinhas, daquelas menorzinhas pretinhas mais travessas. Bolos são de vários sabores, cozinhas também, pois passam por lá gente de tudo quanto é tipo e todo tamanho de fome. Bolo tem camadas,cozinha também, pois no decorrer do dias a variedade vai mudando. E assim vai..
Mesmo com os outros fogões a gás, as comidas mais famosas e típicas eram como regra preparadas no fogão a lenha. Tem todo aquele jogo de cintura: pega lenha, coloca lá. Mas tinha que ter gravetos, lenhas maiores ou médias. Passando o tempo tem que ir mexendo a lenha de forma a aumentar ou diminuir o fogo e ainda melhor que isso é panela de -barro com colher de pau, mas tem que mexer fazendo aquele vai-e-vem da colher e da cintura. Ô delícia!
E o fogão a gás? Acende o fósforo, gira aquilo que não sei o nome e pronto. Fogo pronto. Fogo imutável. Fogo previsível. Foguinho.
Fogo de fogão à lenha é inóspito. É bravo. É verdadeiramente vermelho. Imprevisível. Fogão.
Eu reconhecia as pessoas pelo período que elas passavam na cozinha. Quanto mais tempo, mais familiarizada com ela eu ficava. Além do que, entrou em cozinha,tem que trabalhar também. Povo lá conversa bastante, mas trabalha o dobro. Resultado disso tudo: Comida 'deliciosamente maravilhosa'. Comida se faz de carinho também.
Hoje em dia as festas de família diminuíram. Parece que o povo se mudou pra tão longe! Só se consegue juntar todo mundo nas festas de aniversário dos vovôs.
Será que é porque o povo trabalha bastante ou por que os laços se esvaeceram?
Prefiro acreditar na primeira hipótese.
Vou parando por aqui por que a fome já bateu. Aqui não tem fogão a lenha, nem festas de família. Aqui hoje só tem a saudade.
Quanta saudade daquilo que já se foi
(bolo com doce com café com refrigerante com arroz com carne assada com feijoada com pamonha com doce de leite com acerola com carambola com família reunida com formiguinhas espertas com riachos e sonhos!)Minha alma tem saudade dessas festas com família reunida e tudo mais. E como disse a Adélia Prado: “Seria tão bom, como já foi”. Não é só alma mineira que vive de saudade. Minha alma também, às vezes. Na maior parte delas.
Bateu fome aí também?
Até a próxima!